Gestão dos Assuntos Públicos: Construir Consensos para superar a crise

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Introdução

A COVID-19 tornou ainda mais evidente do que era habitual um problema que afeta muitos países do mundo, especialmente os subdesenvolvidos, e que é a falta de políticas públicas de consenso que transcendam os governos no poder e proporcionem às nações padrões de institucionalidade e estabilidade, como veremos a seguir.

Os dados da macroeconomia são determinantes em países como a Espanha e a Argentina. Na Península Ibérica, a taxa de desemprego é de 16,13 %, ao passo que 20 % dos espanhóis são pobres, considerando-se que a taxa de pobreza corresponde às famílias abaixo de 60 % da média nacional de rendimentos. No caso das crianças e jovens, os números são mais preocupantes: 27,1 % dos menores de 16 anos são pobres.

Na Argentina, a situação ainda é mais grave: de um total de quase 45 milhões de habitantes, 19 milhões vivem abaixo do limiar da pobreza, ou seja, 42 %, e, no caso das crianças, 57,7 % das que têm entre 0 e 14 anos são pobres. O desemprego, por seu lado, está nos dois dígitos, nos 11,7 %. A inflação média relativa ao período de 2010 a 2019 tem sido de 33 % ao ano.

Em suma, a crise é profunda nos dois lados do oceano. No entanto, a crise argentina é muito mais grave do que a espanhola, podendo as diferenças na gravidade do problema entre os dois países ser explicadas, entre outros, pelos seguintes fatores: 1) a existência, na Península Ibérica, de uma plataforma de políticas públicas que transcendem as mudanças das cores partidárias do governo; 2) a existência de um organismo supranacional eficiente (a UE) que apoia os países do continente.

A pergunta que colocamos é: sai-se da crise com base no confronto ou no consenso?

Estamos profundamente convictos de que o consenso é o caminho a seguir, partindo das premissas a seguir descritas.

  • Os países desenvolvem-se apenas se tiverem uma plataforma sólida de políticas públicas que transcenda no tempo as mudanças de governo, o que os torna estáveis, uma vez que as regras do jogo não variam, sendo esta uma condição indispensável para atrair o investimento privado, que, por sua vez, é o principal estímulo para a criação de emprego genuíno.
  • A existência de políticas públicas de consenso que transcendem os governos no poder só é possível se, no processo de criação das mesmas, houver a participação da maior quantidade possível de intervenientes interessados, envolvidos e / ou afetados.
  • A participação plural dos intervenientes interessados, envolvidos e / ou afetados na produção das políticas públicas ocorre apenas se houver entre eles: a) uma relação sólida de confiança; b) um marco institucional que garanta o diálogo e o compromisso.
  • Para tal alcançar, é necessário não deixar ao acaso nem à economia informal a relação entre os intervenientes do poder que decidem o futuro da vida de um país, pelo que se torna fundamental gerir estrategicamente as relações entre os intervenientes interessados, envolvidos e / ou afetados no quadro da produção das políticas públicas.
  • A gestão dos assuntos públicos é uma tarefa profissional e essencial para o futuro dos países, pois fornece as ferramentas necessárias para estreitar os laços de confiança indispensáveis à criação de políticas públicas de consenso. 

Então, de que falamos quando falamos de desenvolvimento? Alfonso Santiago, prestigiado jurista argentino e diretor da Escola de Governo da Universidade Austral, define «desenvolvimento» como sendo a realização do bem comum: «O conjunto de condições materiais e espirituais, de conteúdo muito variado (político, social, económico, cultural e educativo, urbanístico e ambiental etc.), que favorecem o normal e pleno desenvolvimento da pessoa humana e dos grupos que compõem a sociedade política; tais condições devem, por um lado, ser criadas por e para cada dos que a integram essa mesma sociedade, e, por outro, ser administradas por um governo da autoridade pública lúcido e com poderes circunscritos» (Santiago, 2010, p. 90).

Entendemos que, no contexto da definição, a mobilidade social ascendente é fundamental como prova da prosperidade ligada às questões materiais e, especialmente, às económicas. Sair da pobreza é ter habitação condigna, acesso à saúde e à educação, ter uma alimentação saudável, ser o próprio a decidir o futuro, realizar sonhos, viver em liberdade etc. Um país desenvolve-se quando promove o bem comum para os habitantes.

É evidente que o emprego genuíno é, por excelência, um dos pilares nos quais assenta a mobilidade social ascendente. O emprego é sinónimo de dignidade, e o emprego genuíno é o que é criado e oferecido pelo setor privado, o qual investe na produção. Não compete ao Estado a criação de emprego, mas sim das condições para o setor privado o fazer.

“A gestão dos assuntos públicos é uma tarefa profissional e essencial para o futuro dos países”

A primeira pergunta que devemos colocar, então, é: qual é a condição fundamental para o setor privado investir num país? Consideramos que, para os empresários investirem, são necessárias duas condições: estabilidade e segurança jurídica. Para haver investimento, é essencial que as regras do jogo não mudem ao sabor das mudanças de governo. A explicação é simples e evidente: quem investiria num país instável e turbulento? Além disso, quem investiria num determinado setor ou produto se aqueles que definem as regras do jogo estiverem constantemente a alterá-las?

No caso da Argentina, os dados objetivos revelam que o investimento privado de 2010 a 2019 foi de apenas 17,1 % do PIB. No mesmo período, o desemprego foi, em média, de 7,9 %. A situação é ainda mais grave, pois tenhamos em conta que, na Argentina, quatro em cada dez trabalhadores estão na economia informal.

Voltando ao assunto, garantir que as regras do jogo são estáveis para inverter o estado de coisas é obrigação e dever de quem dirige o destino do país, e a ferramenta para alcançar esta inversão é a política pública. Se a política pública for estável, sólida, baseada em dados factuais, transparente e, mais importante ainda, duradoura, o país torna-se estável, e um país estável atrai o investimento privado.

É evidente que a pandemia não tem ajudado neste aspeto. A pobreza leva a uma queda no consumo, resultando numa queda impressionante nos indicadores de rendibilidade. Desta forma, cai o investimento, o que afeta a criação de fontes de trabalho. Pior ainda é o facto de se terem perdido empregos como poucas vezes aconteceu na história. Resumindo, se as empresas não tiverem lucro, não investem; se não investirem, não crescem; se não crescerem, não criam mais postos de trabalho, e, se não criarem emprego genuíno, há menos mobilidade social ascendente.

“Para os empresários investirem, são necessárias duas condições: estabilidade e segurança jurídica”

É essencial a estabilidade, sendo esta da responsabilidade tanto dos governantes quanto dos partidos que estão na oposição.

Começando a responder à pergunta inicial sobre conflito vs. consenso, consideramos indispensável a implementação de políticas públicas para atrair investimentos privados que possam dar emprego aos milhões de pessoas empobrecidas pela pandemia. A estabilidade de que o setor privado necessita para recuperar e investir só será alcançada se os partidos no poder e na oposição abandonarem o confronto e avançarem para o diálogo e para um acordo sobre uma série de questões básicas que tornem evidente que o bem-estar das nações é o mais importante. 

Neste sentido, é fundamental trazer para a mesa todos os setores que movem um país, tanto na esfera pública quanto na privada, assim como no chamado terceiro setor. Para uma política pública ser sustentável ao longo do tempo tem de representar os interesses daqueles a quem se dirige.

Pensemos num caso: suponhamos que, em resultado da pandemia, o líder de um governo deseja mudar a estrutura fiscal do país ou de uma cidade; para tal, recorre a vários intervenientes do poder, incluindo o seu principal adversário político, e este diálogo resulta numa política consensual. Surge então a questão: se, anos mais tarde, o tal adversário político conseguir ganhar as eleições e chegar ao poder, será que vai destruir a política fiscal em cuja produção também esteve envolvido? Certamente que não, e, se o fizesse, provavelmente convocaria quem o havia convocado no passado. Desta forma, as políticas públicas tornam-se estáveis.

Para isso, as ligações são essenciais. É fundamental construir pontes, o que é uma tarefa complexa.

Aqui falamos de assuntos públicos como engenharia social para promover mais e melhores relações entre os intervenientes do poder.

Neste contexto de pandemia, é essencial definir «assuntos públicos», de modo a pensar no tipo de liderança política necessária para sair da crise.

Em primeiro lugar, concetualmente, dizemos que os assuntos públicos são as questões e / ou problemáticas que afetam uma parte – quantitativa e / ou qualitativa – da sociedade, cujo desenvolvimento / solução requer dois ou mais intervenientes, uma vez que nenhum deles tem, por si só, autonomia nem poder suficiente para poder enfrentá-los sozinho.

Profissionalmente, os assuntos públicos são a disciplina que gere de forma sistematizada e estratégica a relação entre os intervenientes do poder, a fim de desenvolver / resolver estas questões / problemáticas e, consequentemente, obter benefícios diretamente relacionados com os respetivos interesses.

“Consideramos indispensável a implementação de políticas públicas para atrair investimentos privados”

Gerir assuntos públicos é exatamente o mesmo, mas entre pessoas e / ou instituições.

Na engenharia dos assuntos públicos, estão envolvidos elementos muito importantes, tais como a reputação, a confiança e a credibilidade, sem os quais é impossível tecer laços sólidos capazes de promover acordos sustentáveis, de enorme benefício.

A diferença está em que, ao contrário dos engenheiros que constroem pontes entre cidades, os profissionais dos assuntos públicos trabalham com um assunto muito mais complexo: a pessoa humana. Os seres humanos são complexos, dada a nossa história, a nossa personalidade, as nossas ideologias, os nossos interesses, os nossos defeitos etc. Por este motivo é que gerir as nossas relações é uma tarefa muito difícil, que requer capacidade, formação e experiência.

A tarefa dos profissionais dos assuntos públicos, neste contexto de pandemia, não é exceção. Mais do que nunca, desempenham um papel que transcende a gestão da relação entre os que movem um país. É imprescindível conhecer as histórias, os interesses, os objetivos, analisar como criar em conjunto, os custos e benefícios etc.

Os governos não escapam a esta realidade. É um erro crasso considerar que um governo temporariamente encarregado do poder do Estado é alheio à disputa de interesses. Um governo é um interveniente (coletivo) no cenário público, dividindo o poder com outros intervenientes do setor público, do setor privado e do terceiro setor. É claramente um interveniente principal, e não secundário, mas não deixa de ser um interveniente.

Por esta razão, é fundamental o governo gerir a relação que tem com os restantes intervenientes no cenário público para obter a colaboração destes (recursos, benefícios etc.) na criação de políticas públicas.

Neste percurso, é imprescindível os governos compreenderem que, para obter benefícios, os demais intervenientes também saiam a ganhar, pelo que é necessário dar-lhes alguma coisa em contrapartida, de acordo com os interesses que tenham, e considerar esses intervenientes (incluindo os adversários) como parceiros na busca do bem comum.

No caso da Argentina, quais são as políticas públicas que não são discutidas devido à falta de gestão das relações entre os intervenientes do poder?

  • Uma lei de coparticipação que distribua os recursos de forma justa e eficiente, de modo a permitir às províncias satisfazerem as necessidades da população.
  • Uma reforma do sistema de contratação laboral que modernize a relação entre empregadores e trabalhadores, incentivando a criação de emprego.
  • Uma reforma do sistema judicial que acelere os processos.

Deixamos aqui a inquietação em aberto relativamente à necessidade de o setor público, especialmente os governos, incorporar políticas de assuntos públicos, desenvolvidas e implementadas por gabinetes públicos profissionais, de modo a que esta área tão importante não seja deixada ao acaso nem executada por amadores.

Gerir os assuntos públicos é atender, de forma plural e participativa, às exigências da sociedade, favorecendo a criação de políticas públicas que ofereçam soluções para os problemas urgentes.

Gerir assuntos públicos é também reivindicar o progresso da democracia representativa, relativamente à poliarquia e governação, uma vez que incentiva ao extremo a participação social dos intervenientes individuais e coletivos na tomada de decisões. Não há governação sem uma gestão profissional dos assuntos públicos, ou, pelo menos, não há uma governação plena.

“Gerir os assuntos públicos é atender, de forma plural e participativa, às exigências da sociedade, favorecendo a criação de políticas públicas”

Gerir assuntos públicos é também reivindicar o progresso da democracia representativa, relativamente à poliarquia e governação, uma vez que incentiva ao extremo a participação social dos intervenientes individuais e coletivos na tomada de decisões. Não há governação sem uma gestão profissional dos assuntos públicos, ou, pelo menos, não há uma governação plena.

Gerir assuntos públicos é reivindicar o outro, um outro necessário, que é meu parceiro na busca do bem comum, que poderá ser meu adversário, mas que não deve ser meu inimigo, um outro que tem aquilo que me falta.

É nossa convicção que o mundo em pandemia deve promover um modelo de liderança adaptativa que compreenda esta necessidade de acordos para superar a crise.

Eduard Beltran, especialista de renome em negociação e estratégias, publicou um livro chamado The Secret Art of Negotiation, cuja capa diz: “NOBODY WINS UNLESS EVERYBODY WINS” (ninguém ganha, a menos que todos saiam a ganhar).

Acreditamos que este é o espírito que deve permear sempre o trabalho político, principalmente no contexto da grave crise desencadeada pela COVID-19. Temos de ver o outro como uma oportunidade, não como um inimigo.

Autores

Joan Navarro
Gonzalo Aziz

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